Minha afilhada está passando pela melhor fase do ensino infantil. Esta aprendendo seu caminho por entre as palavras, desvendando, com toda a inocência, o mundo das frases e suas estruturas complexas, porém de beleza sem igual.
Todo sábado nos sentamos no sofá daqui de casa, e ela traz todos os seus livros. Passamos rápido por matemática e seus números organizados e pensamentos metódico, nada atraentes nem para mim e muito menos para ela. Manu é uma garota das palavras. Ela ainda está aprendendo, e se apaixonando, pelas escritas, admirando-se com o processo secular de colocar seus pensamentos e sons na folha de papel, mas sabe muito bem como usa-las verbalmente em conversas que surpreendem de tão bem estruturas e de temática tão sérias.
Com o livro de matemática fechado e jogado de lado (debaixo de uma almofada, para que não se magoe com o desdém que lhe endereçamos), ela pega, ávida, o livro de caligrafia. Passeamos por folhas completamente preenchidas pela caligrafia redonda e hierográfica das crianças, que todos nós temos, mas perdemos quando o mundo gira incansavelmente e nos força a seguir adiante no tempo. A minha caligrafia sucumbiu diante da pressa em capturar as palavras dos meus antigos professores de faculdade e agora correm para seguir o meu ritmo desenfreado, não parando sequer quando eu mesmo paro para refrear os pensamentos por demais fluidos e ligeiros – rápidos demais para um conjunto de carne, músculos e ossos, acompanhado por uma caneta azul.
Ela me explica cada palavra e como conseguiu desenha, transpô-la no papel. Seus dedos deslizam pelo relevo deixado pela força do esforço em escrever cada letra como deve ser. Ela me olha orgulhosa e eu devolvo esse orgulho, maravilhado com a inocência marcada naquelas páginas.
Fechando o caderno de caligrafia com relutância e deixando sobre o meu colo para que seja tratado de forma digna e respeitosa, ela abre seu livro de português. É um calhamaço para uma criança que esta se alfabetizando, mais de quatrocentas páginas de conhecimento. As páginas estão marcadas por orelhas e dobras. Ao contrário do que sinto quando vejo um livro da mesma forma, acho aquele trabalho belo, enxergando a fome por conhecimento dentro de todas aquelas cicatrizes.
Sem cerimônia, ela corre pelas páginas, procurando os últimos rastros de escrita, até encontrar a cereja daquele bolo feito por tinta, palavras sussurradas e maravilhamento: as redações. Elas são pequenas, não mais do que cinco a dez linhas. As palavras são espaçadas e grandes, mesmo que ainda respeitem os limites das linhas. Leio tudo em um fôlego só. Depois sorrio pela seriedade dos discursos e pela inocência em cada resposta.
Nesse sábado, ela me mostrou a ultima redação que havia escrito. As perguntas eram sempre simples, sem deixar de resvalar em assuntos sérios.
“Quando crescer, como quero ser?”, dizia a pergunta. Uma pergunta importante. O sujeito oculto, escondido no medo implícito na corrente de palavras.
Nunca gostei da ideia de crescer. Sempre tive medo de ser um adulto e esbarrar numa vida de erros e sentimentos confusos de tão fortes. Crescer não foi um pesadelo tão grande e sei que ainda não cresci o suficiente para olhar para trás e dar meu veredito final. Quis dizer tudo isso para ela, mas não o fiz. Seria de uma crueldade grande demais da minha parte e criança nenhuma merece perder, por um momento sequer, um pouco da infância. Mas a pequena redação não me impediu de pensar durante dias o que é ser Adulto, não apenas envelhecer, ter um emprego, depois família. Penso em Adulto como um conceito completo, correndo através do tempo e das emoções do passar do tempo.
Eu ganhei muitas coisas com a vida adulta. Felizmente, mais coisas que levarei comigo para sempre do que as físicas que perecem mais cedo ou mais tarde, sucumbindo conosco contra a força implacável do tempo.
Tenho um emprego bom, que me deixar vislumbrar um futuro bom (mesmo que de certa forma imprevisível), mas que não satisfaz todas as minhas necessidades. Por isso temo pelo futuro, pelo arrependimento que um dia chegará (e ele sempre chega).
Amadureci emocionalmente. Já suportei tristezas que tiraram alguns dias, mas ainda tenho outros dias ganhos por momento da mais refinada felicidade que nunca havia sentido antes. Penso ter quarenta anos, mas sei que tenho vinte e quatro e que os quarenta chegaram até mim no tempo certo.
Me arrependo de algumas coisas (todos os corajosos que erram, estão fadados a levar seus arrependimento nas costas), mas vivo sem o peso ainda maior do medo. Não tenho medo de beber e fumar o suficiente para me arrepender e isso, para mim, é impagável.
Aprendi a sentir de forma honesta, deixando o romance de fora. Sei que cada sorriso é honesto, não preciso fingir mais. Também sei que cada lágrima é preciosa em sua singularidade, por isso choro sem vergonha quando o mundo está triste demais, choro até minha cabeça doer e meus olhos estarem limpos.
Quando ela me pergunta se ser Adulto é bom, eu não respondo e deixo o silêncio leva-la até suas próprias descobertas.
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